domingo, 9 de outubro de 2011

Movimentos de Mulheres


Na história do Brasil, mulheres estiveram presentes em movimentações políticas e culturais desde as lutas coloniais. Mulheres negras envolveram-se na resistência à escravidão e em movimentos abolicionistas, trabalhadoras da cidade e do campo participaram das primeiras lutas sindicais, mulheres de distintas classes instituíram uma agenda de emancipação feminina desde o século XIX, exigindo direito ao trabalho, à propriedade e à herança, à educação, à criação artística e literária, à participação política e ao voto feminino - conquistado, finalmente, em 1932.
Nos anos 1960, novas inquietações se instalam entre as mulheres brasileiras. Em 1964, um golpe militar instaura um regime ditatorial, cerceando liberdades democráticas e instaurando a censura e a repressão política. Paralelamente, o país se industrializa, urbaniza e moderniza aceleradamente, e alteram-se os estilos de vida, as dinâmicas familiares, os padrões de fecundidade, as formas de consumo e modos de acesso à informação. As mulheres não ficam passivas a esses acontecimentos. Engajam-se ativamente nos debates políticos e culturais da época: querem ter autoria na transformação da sociedade e das condições de sua participação nela. Movimentam-se cada vez mais pelo mundo da política, das artes, da literatura, da técnica, da ciência e da comunicação. Podemos vê-las mais e mais presentes no mundo profissional e na educação superior. Pouco a pouco sobressaem no comando da administração pública e da gerência privada. E compõem a primeira linha da resistência contra a ditadura militar. 
Ano 1975. A Organização das Nações Unidas o consagra como o Ano Internacional da Mulher. No bojo de suas comemorações, deslancha uma nova onda do ativismo feminista brasileiro. Mulheres organizam-se em grupos de reflexão, movimentos estudantis, movimentos urbanos, partidos clandestinos de resistência à ditadura, movimentos pela anistia, comunidades de base e sindicatos. Brasileiras retornadas do exílio vêm somar-se a elas, a partir de 1979, trazendo na mala as contribuições do debate feminista no exterior. De norte a sul do país, grupos de mulheres organizam oficinas de autoconhecimento, promovem debates, realizam manifestações de rua, fazem denúncias, publicam jornais alternativos e desenvolvem pesquisas. 
Nosso corpo nos pertence! Quem ama não mata! O pessoal é político! São motes que mobilizam corpos, corações e mentes e que ainda ressoam nas gerações feministas mais novas! A vida cotidiana está em transformação. Discute-se o divórcio, a violência doméstica, a sexualidade, o aborto, o estatuto civil das mulheres. As fronteiras entre o público e o privado, entre o político e o doméstico - barreiras milenares à participação política e à autonomia das mulheres - começam a estremecer. Os anos 1970 ficaram na história como um marco político e simbólico da formação das gerações feministas que conduziriam a bandeira da cidadania e da emancipação das mulheres ao século XXI.
Anos 1980. Em curso a transição política brasileira. Retorno dos exilados, volta ao pluripartidarismo, eleições livres nos estados e capitais. Movimentos sociais invadem o cenário: feministas, negras e negros, periferias urbanas, ambientalistas, trabalhadores rurais, indígenas, novos sindicalismos. Corpos e almas femininos e masculinos também se movimentam entre o som das Frenéticas, tangas de crochê, o boom dorock nacional e poesias de Ana Cristina César e Paulo Leminski. Política e cultura redesenham suas fronteiras, seus estranhamentos e permissividades. 
As mulheres são presença crescente dentro e fora dos lugares tradicionais da política: dialogam com o Estado, partidos e parlamentos; plantam seus temas nas agendas políticas gerais e tomam parte nas negociações da transição; destacam-se nos mundos sindical e artístico e invadem os universos acadêmico e profissional; criam organizações não-governamentais e inauguram a tradição dos congressos de mulheres e encontros feministas. 
Criado em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher fortalece a presença feminista no debate político nacional e, junto como os movimentos sociais, articula a participação das mulheres no processo da Assembléia Nacional Constituinte (1986-1988). Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher! Esse é o lema do lobby do batom, força-tarefa que reúne mulheres dos mais variados partidos e movimentos sociais. Elas elaboram emendas populares e recolhem milhares de assinaturas por todo o país, debatem com deputados, partidos, autoridades do executivo e do judiciário e com a sociedade civil. A Carta das Mulheres Brasileiras para os Constituintes, entregue durante solenidade no Congresso Nacional, foi a primeira plataforma política feminista para a sociedade brasileira, trazendo propostas pertinentes a todas as cidadãs e cidadãos brasileiros. 
No longo caminho de construção da cidadania das mulheres, aConstituição Cidadã de 1988 representa um marco histórico: proclama a igualdade jurídica entre homens e mulheres; amplia os direitos civis, sociais e econômicos das mulheres; estabelece a igualdade de direitos e responsabilidades na família; define como princípio do Estado brasileiro a não-discriminação por motivo de sexo, raça e etnia; proíbe a discriminação da mulher no mercado de trabalho e estabelece direitos reprodutivos. 
No decorrer dos anos 1980, os valores, os conceitos, a vida cotidiana, a articulação público/privado e a intimidade estão em transformação. A conversação comum, a linguagem dos corpos, as artes e a literatura, as agendas política e cultural e a nova Constituição do país refletem essa mudança. 
Anos 1990. Momento novo e ambíguo. Recompõem-se o Estado de Direito e as liberdades democráticas; a sociedade civil está fortalecida e organizada e as novas diretrizes constitucionais trazem a promessa de uma ampliação histórica da cidadania. Por sua vez, o ajuste estrutural, as reformas neoliberais e os governos sustentados por bases conservadoras emperram a efetivação dos direitos e o aprofundamento da democracia. Há fortes tensões entre projetos de sociedade muito diferentes e o jogo democrático não está decidido. 
Turbulências político-institucionais, políticas econômicas que acentuam as desigualdades sociais e o modo de incorporação do país aos processos de globalização quebram expectativas e abalam os movimentos sociais. Porém, as mulheres não arrefecem: os movimentos continuam a expandir-se, ampliam a constelação de suas práticas, auto-transformam-se e seguem apostando nas alternativas democráticas. Há uma nova Constituição a ser implementada, há forças sociais organizadas apostando no fortalecimento de uma cultura de direitos e não-discriminação e há espaços para se inventar outras globalizações. Mulheres e movimentos investem na participação nos espaços onde se elaboram as novas leis e programas de políticas públicas; se debatem as reformas da saúde, da educação e de outras áreas de políticas do Estado; se constroem os conselhos e outros mecanismos de controle social da cidadania; e se desenvolvem ações afirmativas para promoção dos direitos. Mergulham também nos processos nacionais, latino-americanos e globais das Conferências Internacionais da Organização das Nações Unidas, apresentando novos olhares para as questões do desenvolvimento, meio ambiente, direitos humanos, população, discriminação, pobreza e exclusão.
No limiar do novo século, as mulheres em movimento estão em muitos lugares diferentes: academia, terreiros de candomblé, igrejas, sindicatos, parlamentos e partidos políticos, associações comunitárias, ONGs, ministérios, serviços públicos, órgãos do judiciário, organismos internacionais, empresas, rádios, teatros, cinema, jornais e espaços virtuais. 
Os anos 1990 ficam registrados na história como o primeiro ato de nossa contemporaneidade: pós-ditadura, pós-Muro de Berlim, pós-nova Constituição Federal, pós-insurgência da nova onda feminista. Assim chega-se ao século XXI: o feminismo florescido em sua quinta-essência como experiência e crítica da modernidade. Não mais "como uma onda no mar", tampouco "movimento específico", representando meramente reivindicações de um grupo da sociedade. E, sim, o feminismo como força producente de cultura, sociabilidade e energia política, falando "para" e "com" todo o mundo, encorajando esperanças e utopias, dando sua contribuição a um projeto de civilização realmente democrática.

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